
Comunidade de Pyelito Kue, em Iguatemi, acampa em parte da Terra Indígena Iguatemipeguá I sobreposta pela Fazenda Cachoeira
Gabriel Moncau/O Joio e o Trigo –
Alvos de ataques de pistoleiros por três madrugadas seguidas desde que retomaram parte do seu território, no Mato Grosso do Sul, indígenas Guarani Kaiowa do tekoha Pyelito Kue no município de Iguatemi reconstruíram barracos de lona incendiados e afirmam que não vão arredar o pé de seu território tradicional.
“A sensação é de que é hoje ou nunca. Se a gente obedecer eles [fazendeiros e pistoleiros], nunca vão demarcar nossa terra”, resume o indígena Xe Ryvy Rendy’i: “É demarcação ou morte”.
Depois de passar 22 dias escondidos em um pequeno trecho de mata rodeado de pasto de gado na Fazenda Cachoeira, os Guarani Kaiowa resolveram acampar em campo aberto, no meio do capim, desde o último 3 de novembro. Horas depois começaram os ataques com fogo, balas letais e de borracha.
Quatro pessoas se feriram e uma idosa com pressão alta desmaiou e teve de ser levada ao hospital em Campo Grande (MS). A Fazenda Cachoeira é uma das 44 que estão sobrepostas à Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I.
Identificada e delimitada como terra Guarani Kaiowa pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2013, a área de 41.714 hectares abarca os tekohas (“lugar onde se é”, em guarani) Pyelito Kue e Mbaraka’y e está, desde então, com o processo demarcatório paralisado.
As cerca de 120 famílias da aldeia Pyelito Kue vivem em uma área de 97 hectares traçada a partir de um acordo judicial de 2014. Rodeados por eucaliptos e pastagens das fazendas Cachoeira e Cambará, os indígenas alegam estar passando fome. Segundo eles, estão espremidos, não conseguem plantar, dependem de produtos industrializados da insuficiente cesta básica mensal e quando saem para caçar ou pescar, correm risco de tomar tiro de jagunço.
A Fazenda Cachoeira, recém ocupada, é arrendada por duas empresas de produção e exportação de carne. São elas a Agropecuária Santa Cruz, de Luiz e Valdir Grapegia, e a Agropecuária Guaxuma e Iguatemi Foods, de Marcos Alexandre e Mauro Sérgio Domingues.
Ampliar para plantar
Kuñai carrega o trauma de já ter sido agredida e estuprada por pistoleiros em 2016 quando, grávida de oito meses, perdeu o seu bebê. Tem coragem, no entanto, de integrar a vigília da retomada durante as madrugadas. “Esse território é nosso desde os antigos. Nossa tataravó, avó, cresceram e morreram aqui. O meu tio está enterrado aqui. Então retornamos”, conta, com o rosto pintado de preto e de laranja-urucum.
“Estamos muito apertados na aldeia. As famílias aumentam e a terra está muito fraca, cheia de areia. A gente planta melancia, batata doce, mas sai bem pequeninho”, Kuñai demonstra com a mão.
“O milho fica fraco e morre. Tem alguns animais, mas precisam ficar presos porque logo do lado já tem vizinho. Às vezes a comunidade chora. Mães e pais sofrem muito vendo as crianças com fome”, relata.
“A Justiça demora muito, não aguentamos mais esperar a demarcação. Por isso a comunidade se reuniu e decidiu retornar. Até o cachorro decidiu. Estamos pensando nos nossos filhos. Queremos ampliar para plantar”, defende Kuñai.
Não existe nenhum transporte público que percorra os 25 quilômetros de estrada de terra entre Pyelito Kue e o centro de Iguatemi. Uma ida à cidade para passar no mercado ou sacar o Bolsa Família acontece esporadicamente, quando quatro pessoas enchem um táxi para rachar o valor de cerca de R$ 120.
“A gente quer uma escola de qualidade aqui, um posto de saúde, uma quadra. Quando a gente vai pedir para o município ou outros órgãos falam que não, que a área não é homologada ainda. Então o povo se organizou: já que o problema é demarcação, vamos para cima da nossa autodemarcação”, salienta Xe Ryvy Rendy’i.
Os ataques
Às 4h da manhã de 4 de novembro, a retomada foi cercada por pistoleiros. Incendiaram os barracos e por 40 minutos dispararam balas letais e de borracha.
“A noite foi de terror”, sintetiza Rendy’i. Há três dias sem energia elétrica, os celulares estavam descarregados e os indígenas não conseguiram acionar as autoridades.
Segundo eles, a equipe da Energisa foi impedida por funcionários da fazenda de religar a eletricidade. Um jovem de 18 anos foi alvejado por um tiro de bala de borracha no joelho. Outra bala atingiu o pé de uma mulher, que corria com uma criança de um ano e meio no colo. Caiu no chão e sua filha machucou a costela. O mesmo aconteceu com uma jovem de 16 anos: caiu com seu bebê de sete meses, que ficou com uma escoriação na cabeça. Uma criança de 12 anos teve uma das mãos queimadas por um rojão.
Quando amanheceu, os celulares foram levados para carregar na Reserva Indígena Sassoró, contígua a Pyelito Kue. Só então a notícia do ataque circulou. Durante o dia, uma viatura da Polícia Militar foi até o local, tirou fotos e se retirou.
As imagens constariam em um ofício assinado pelo comandante Helbert Davyson Romeiro de Souza e enviado à Funai. Nele, apesar de não haver ordem judicial e de a competência de lidar com conflito indígena ser circunscrito à Polícia Federal e à Força Nacional, a PM orienta que a Funai faça “tratativas” para a “desocupação pacífica da área”, no intuito de evitar “a necessidade de emprego de força policial”.
Em torno de 0h de 5 de novembro, houve novo ataque. “Aí já vieram para matar. Atiraram com calibre .12. Quase que uma bala me acertou e outra, meu irmão”, conta Xe Ryvy Rendy’i. De acordo com Giovana*, Guarani Kaiowá de 50 anos, os pistoleiros chegaram em uma caminhonete D20 branca e três carros Uno: um branco, um vermelho e um preto.
Depois de atacar a retomada, dispararam também contra a aldeia, que fica do outro lado de uma estrada de terra, onde várias pessoas tinham ido para se proteger. Os atiradores usavam máscaras e se retiraram, mas voltaram quando o sol começou a raiar no dia 5 de novembro. Foi na casa de Giovana, com marcas de tiro no telhado e na porta constatadas pela reportagem, que quatro homens entraram, segundo contou.
No seu quarto, um deles a pegou pelos cabelos, apertou sua garganta, empunhou uma faca contra seu pescoço e a ameaçou de morte. Ao se desvencilhar, Giovana saiu correndo e bateu a perna em um banco de madeira. “Gritei muito, pedi a Deus por socorro”, relata, com lágrimas nos olhos. Mancando, mostrou uma panela que ainda está no seu fogão, alvejada bem no meio por um tiro. A bala caiu no chão do seu quarto.
Ruralistas
Procurada pelo Joio, a Agropecuária Guaxuma afirmou que “desconhece” o “conflito fundiário que envolve os Guarani Kaiowa de Pyelito Kue” e que “não possui qualquer tipo de segurança na propriedade arrendada”. Um dos seus sócios administradores e também diretor do Iguatemi Foods, Mauro Sérgio Domingues, esteve em reunião em 2024 com o prefeito de Iguatemi, Lídio Ledesma (PSDB), para tratar, segundo post da própria prefeitura, da “expansão da indústria”.
Em fevereiro deste ano, Ledesma fez a doação de uma chácara para a ampliação do frigorífico Agroindustrial Iguatemi. O prefeito também esteve presente na cerimônia de posse da atual diretoria do Sindicato Rural de Iguatemi, presidido por Luiz Carlos Bombardelli. A vice-presidenta da entidade ruralista é Helena Bonamigo, família proprietária da Fazenda Cambará. Também estiveram presentes no evento o coronel Cleder Pereira, comandante do Policiamento Rural da PM de Mato Grosso do Sul, e Márcio Margatto, ex-presidente do Sindicato Rural e da família proprietária da Fazenda Santa Rita, outra que está sobre a TI Iguatemipeguá I. Também da família, Patrícia Margatto (PP) é, atualmente, vice-prefeita de Iguatemi.
O prefeito também esteve presente na cerimônia de posse da atual diretoria do Sindicato Rural de Iguatemi, presidido por Luiz Carlos Bombardelli. A vice-presidenta da entidade ruralista é Helena Bonamigo, família proprietária da Fazenda Cambará. Também estiveram presentes no evento o coronel Cleder Pereira, comandante do Policiamento Rural da PM de Mato Grosso do Sul, e Márcio Margatto, ex-presidente do Sindicato Rural e da família proprietária da Fazenda Santa Rita, outra que está sobre a TI Iguatemipeguá I.
Também da família, Patrícia Margatto (PP) é, atualmente, vice-prefeita de Iguatemi. Já Marcos Alexandre Domingues, sócio-administrador da Guaxuma ao lado de Mauro Sérgio, é presidente do conselho fiscal da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).
A entidade, composta por outras gigantes do setor agropecuário, como Marfrig e JBS, está com presença confirmada na COP30, que acontece até 19 de novembro em Belém (PA). A Associação, com empresas em áreas sobrepostas a terras indígenas, participa de mesas sobre sustentabilidade da pecuária e inovação tecnológica na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas.
A Agropecuária Santa Cruz, também arrendatária da Fazenda Cachoeira, não respondeu ao contato da reportagem. O espaço segue aberto. “Iguatemi é um centro de fazendeiros. Não temos apoio nenhum. Não confiamos nos políticos nem na polícia, eles são contra os direitos dos povos indígenas. Por isso a gente sempre se reporta às instâncias federais”, descreve Xe Ryvy Rendy’i. “Quando precisamos de atendimento médico na cidade somos tratados com preconceito”, denuncia.
“Chamam a gente de invasores, mas não somos invasores. Não queremos os bens dos fazendeiros. Os gados, as casas, as máquinas: podem tirar tudo isso. Queremos recuperar nossas matas, queremos nossa terra. O meio ambiente também precisa. Os animais, os pássaros, as plantas. Todos nós precisamos disso para viver. Não dá para ser só gado, soja, eucalipto. Para onde os animais vão? E nós? E nossos rios? E as nascentes? Já não temos mais floresta, mata, rios. Os fazendeiros só querem destruir, só pensam em dinheiro. Então nossa luta não serve só para nós, indígenas. É para a sociedade inteira”, argumenta.
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