O que o mundo produz de riqueza hoje é suficiente para assegurar o bem-estar econômico de todas as pessoas do planeta
Luiz Fernando Leal Padulla/Diplomatique –
Há tempos as escolas seguem repetindo em seus livros didáticos que o Brasil é o celeiro do mundo. Livros esses que agora passam pelo crivo de uma censura disfarçada, como deseja a Frente Parlamentar da Agropecuária que “busca a atualização de livros didáticos aplicados em escolas sobre a realidade da agropecuária”, seguindo a lógica falaciosa e arcaica de que temos que produzir mais alimento porque a população mundial está em crescimento.1
O que não se fala é que há hoje no mundo alimento suficiente para eliminar a fome de todas as pessoas no planeta. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), temos uma produção de alimento de 2,5 bilhões de toneladas anuais2 suficiente para alimentar 10 milhões de pessoas (e a população mundial atual é de 8,2 bilhões). Ao mesmo tempo, há um desperdício 1,3 bilhão de toneladas anuais, ou ainda, mais de 1bilhão de refeições diárias.3,4
Alimento sobrando e pessoas passando fome. Por que isso? Usando o Brasil como exemplo, temos que a produção, em grande maioria (70%)5, não é alimento, mas matéria-prima bruta para exportação, principalmente soja, milho, algodão e cana-de-açúcar, a ser transformada em ração animal, por exemplo. As chamadas commodities, sem valor agregado e que favorece/enriquece apenas os grandes latifúndios.
Com isso temos 750 milhões de pessoas no mundo ainda passando fome (escassez grave e generalizada de alimentos que leva à desnutrição, à inanição e à morte)6, ou ainda 2,3 bilhões de humanos (sobre)vivendo em insegurança alimentar (falta de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente para uma vida saudável, sem saber se terão o que comer até a fome crônica, causada por fatores como falta de renda, crises econômicas, conflitos e mudanças climáticas)7.
Quando focamos apenas em crianças menores de 5 anos, essa fome (pela falta de distribuição de alimento e não pela falta de produção), anualmente são 6 milhões delas que morrem de fome! Apenas a título de curiosidade em 6 anos da 2ª Guerra Mundial, matou-se um décimo do que se mata hoje em relação às crianças pela fome (excluirei dessa análise as guerras que causam fome e miséria no Sudão, Congo, Somália, Haiti e até mesmo o holocausto palestino, que além do genocídio impetrado pelos sionistas aliados dos nazistas desde 1948, seguem sob cerco desde 2007, sob condições ainda mais desumanas, racistas e de limpeza étnica, que agora tenta novamente se reerguer sob um pseudo cessar-fogo).
A concentração de renda – e terras – promove a desigualdade social, como nos alertou Marx. Para se ter uma pequena – e revoltante – ideia sobre isso e a barbárie que esse sistema econômico impõe, lembremos que 1% da população mundial (o que corresponde a cerca de 80 milhões de pessoas, possui 45% da riqueza mundial (um patrimônio de 210 trilhões (!) de dólares. No Brasil, o relatório da Oxfam mostra que 63% da riqueza está nas mãos de apenas 1% da população, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas 2% do patrimônio do país.8
(Em tempos de COP30, é importante dizer também que a pequena porcentagem de 0,1% dos mais ricos do mundo, são os responsáveis diretos por emitirem mais carbono na atmosfera em um único dia.)9
E de acordo com o relatório da Oxfam, apenas 1% da riqueza acumulada em dez anos no mundo poderia acabar com a pobreza mundial por 22 anos. Mas como sabemos, a fome é uma questão política. Ou seja, o que o mundo produz de riqueza hoje é suficiente para assegurar o bem-estar econômico de todas as pessoas do planeta.
Mas a questão é: por que não fazem isso? Por que esse 1% insiste em manter essa desigualdade e, mais ainda, ser o principal responsável pela destruição acelerado do planeta? Por que o 1% mais rico do planeta polui tanto quanto cerca de 5 bilhões de pessoas e não se preocupam em diminuir ou acabar com isso? O que parece teoria conspiratória, de que desejam acelerar a destruição para sobreviverem em seus bunkers de luxo e até colonizarem novos planetas, parece não ser tão conspiratório assim.11,12,13
Como diz o diretor executivo da Oxfam Internacional, Amitabh Behar, a crise climática é uma crise de desigualdade. Os indivíduos mais ricos do planeta financiam e lucram com a destruição do clima, enquanto a maioria da população mundial paga o preço das consequências fatais do seu poder sem controle.
Mas voltando a questão dos alimentos. Atualmente atingimos um índice preocupante anunciado pela UNICEF: temos mais obesos do que pessoas desnutridas no mundo.14 A princípio isso pode parecer uma grande incoerência com o que foi escrito acima, afinal, se as pessoas estão obesas, é porque estão comendo mais, certo? Errado! Obesidade é uma doença séria e crônica. Há problemas sérios relacionados a tudo isso: primeiro que obesidade não significa necessariamente uma pessoa bem nutrida, e junto dela, além das doenças já conhecidas (diabetes, colesterol elevado, problemas articulares, invalidez etc.), os índices de obesidade estão sendo atingidos pelo modo de vida que temos adotado (leia-se, sedentarismo) e pelos tipos de alimentos ingeridos, com base em ultraprocessados.

E quem está por trás desse tipo de comida? Corporações globais de indústrias do agronegócio e farmacêutica. Uma sacada sensacional do sistema capitalista, afinal, os ingredientes usados nesse tipo de comida são de baixo custo, carregados de conservantes, aromatizantes viciantes, açúcar, sal e todas as formas que garantem não apenas uma produção à baixo custo, mas grande durabilidade e, principalmente, fácil acesso, seja para o transporte ou pelo preço acessível – em especial para a grande maioria das pessoas de baixa renda e que “em seu corre diário”, não tem tempo/dinheiro para se alimentarem de forma correta.
Inevitável não associarmos isso à luta pelo fim da escala 6×1
Esse tipo de postura imposta à sociedade (do cansaço, como diria Byung-Chul Han)15 é o que podemos chamar de nutricídio, termo criado na década de 90 pelo médico Llaila Afrika: dificuldade ou falta de acesso a alimentos saudáveis e que deveriam fazer parte da cultura alimentar, incluindo as consequências que isso traz à saúde.16
Além de baixa qualidade, carente de nutrientes essenciais e repleto de aditivos sintéticos, usam como base produtos contaminados com agrotóxicos. Agrotóxicos, em sua grande maioria, banidos na própria Uniao Europeia, mas que seguem sendo liberados e usados no Brasil e em vários países do sul global em concentrações extremamente abusivas.17
Apenas para ilustrar, cito como exemplo o glifosato. De acordo com dados do USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos), mais de 90% do milho e da soja produzidos no país são geneticamente modificados (os chamados “transgênicos”) para tolerar esse herbicida.18 Em estudo publicado pela revista científica Journal of the American Medical Association (JAMA), foi constatado um aumento da exposição dos estadunidenses em 500% desde a introdução desse químico nas lavouras a partir de 1996. As amostras de urina de crianças e adultos, realizadas em 2022 pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, revelou a presença do agrotóxico em 80% das pessoas.19
Não preciso falar novamente dos danos que esses agrotóxicos causam não apenas nos seres humanos, mas nos demais seres vivos e no ambiente como um todo – a quem interessar tenho outros artigos tratando especificamente sobre isso, além de relatar em um dos capítulos de meu livro Entre mitoses e revoluções.20,21,22
E contrariando o desejo de omitir os fatos do agronegócio negacionista, mais evidências surgem do problema que o combo ultraprocessados/agrotóxicos causam nas pessoas.
Uma pesquisa publicada pela revista científica BMJ Oncology, mostra que no mundo23 houve um aumento de 79% nos novos casos de câncer entre pessoas com menos de 50 anos nas últimas três décadas (1990-2019). Entre os fatores estão o tabagismo, sedentarismo e obesidade. O que chamou a atenção foi o aumento expressivo, nas últimas décadas, de câncer de intestino em jovens, tornando esse a principal causa de morte por câncer em homens com menos de 50 anos.24
No Brasil, a situação não é diferente. Dados apresentados pelo DataSUS25 também mostra um aumento significativo de 284% nos registros de câncer entre jovens até 50 anos no Sistema Único de Saúde (SUS) entre 2013 e 2024. Por um lado, isso se deve a melhoria nos diagnósticos, mas é inegável que fatores ambientais também respondem por esse incremento.26
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) foram enfáticos em afirmar e reconhecer que a exposição aos agrotóxicos sintéticos eleva o risco de alguns tumores27, principalmente em trabalhadores rurais e populações vulneráveis (as mesmas que ingerem alta quantidade de ultraprocessados).
Outro aspecto que chama atenção é o boom de pessoas intolerantes ao glúten. É fato que existem sim pessoas intolerantes (a ciência prova isso através da genética), no entanto, estudo pouco conhecido e publicado em 201928 mostrou que muitas pessoas diagnosticadas como intolerantes a essa proteína apresentavam similaridades com uma intolerância/alergia ao glifosato (agrotóxico químico utilizado amplamente na sociedade – sendo o Brasil seu maio consumidor – o tal “mata-mato”).
E o que fazem as pessoas intolerantes ao glúten? Usam medicamentos para amenizar o problema ou são obrigadas a deixar de ingerir produtos à base de trigo (bolos e pães, por exemplo). E quando a inflação intestinal ocorre, mais medicamentos são necessários para amenizar o problema.
Ainda de acordo com a pesquisa28, a American Cancer Society mostrou que a incidência de linfomas (um tipo de câncer no sangue) aumentou em 80% desde a introdução do glifosato no mercado (início da década de 1970).
E nunca é demais lembrar que há uma relação direta entre essas empresas que causam doenças e vendem a cura – lembremos do “casamento dos infernos” entre Bayer (produtora de medicamentos e suplementos) e Monsanto (produtora dos agrotóxicos e dos organismos geneticamente modificados).
Mas a questão como um todo não para por aí. Novos estudos relacionam também os ultraprocessados com danos cerebrais.
Estudo publicado na revista Neuropharmacology29 prova que esse tipo de alimento, presente cada vez mais na dieta de adolescentes (e de pessoas mais pobres), sendo ricos em gordura e açúcar, afetam a região cerebral do hipocampo e o córtex pré-frontal do adolescente, causando efeitos a longo prazo de ansiedade, dificuldade no controle de impulsos e efeitos duradouros na função de aprendizagem e memória.
Em uma sociedade cada vez mais hipnotizada pelas telas, sedentária e regada com má alimentação, teremos gerações não apenas mais doentes – sobrecarregando o sistema de saúde, consumindo mais remédios sintéticos – mas igualmente alienadas, sem memória e aptas a cometerem os mesmos erros do passado. Não seria esse o objetivo por parte da maioria desses políticos que hoje ocupam o Congresso Nacional sem qualquer preocupação com o povo?
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